Faça parte de nossa comunidade!

Coloquemos a poesia como alimento essencial para a evolução da alma dos nossos conterrâneos!!!

sábado, 19 de maio de 2012

Meditação sobre o Tietê - Mário de Andrade

Meditação sobre o Tietê

É noite. E tudo é noite. Debaixo do arco admirável
Da Ponte das Bandeiras o rio
Murmura num banzeiro de água pesada e oliosa.
É noite e tudo é noite. Uma ronda de sombras,
Soturnas sombras, enchem de noite tão vasta
O peito do rio que é como si a noite fosse água,
Água noturna, noite líquida, afogando de apreensões
As altas torres do meu coração exausto. De repente
O ólio das águas recolhe em cheio luzes trêmulas,
É um susto [...]
É noite. E tudo é noite. E o meu coração devastado
É um rumor de germes insalubres pela noite insone e humana. [...]

Mário de Andrade

quinta-feira, 17 de maio de 2012

O ESPAÇO - FERREIRA GULLAR

O ESPAÇO

não há espaços iguais


o espaço
                entre o núcleo
do átomo
e os eléctrons
               nada tem a ver
com o espaço
              entre o sol
              e os planetas
nem com o espaço
              entre
              minha mesa de jantar
              e as paredes em volta


não há espaço vazio
              cada espaço
              é feito
              dos corpos que estão
              nele
              que o deformam e o formam

é feito
de suas energias
e cargas elétricas
            ou afetos

Ferreira Gullar

terça-feira, 15 de maio de 2012

Poesia - Carlos Drummond de Andrade

Gastei uma hora pensando um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
inunda minha vida inteira.

Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 10 de maio de 2012

No meio do caminho - Carlos Drummond de Andrade

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho.
no meio do caminho tinha uma pedra.

Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, 9 de maio de 2012

A onda - Manuel Bandeira

Segundo fontes da internet, o poema é do livro Estrela da Tarde, mas não posso afirmar que a informação procede. Enfim... segue o poema sublime, dotado de recursos sonoros entremeados em aliteração e assonância. Recomendo!

A onda

a onda anda
 aonde anda
      a onda?
a onda ainda
   ainda onda
   ainda anda
         a onde?
aonde?
a onda a onda.

Manuel Bandeira

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Motivo - Cecília Meireles

Poema do livro "Viagem", de 1939.

Motivo 

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
Não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
mais nada.

Cecília Meireles

domingo, 6 de maio de 2012

A rosa de Hiroshima - Vinícius de Moraes

Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas

Mas, oh, não se esqueçam,
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroshima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
sem rosa sem nada.

sábado, 5 de maio de 2012

Chico Buarque - Construção

 Depois de um período turbulento, mas muito significativo e cheio de transformações - graças a Deus, todas positivas - hoje reinicio as postagens neste blog. Criado exatamente para difundir a poesia para os admiradores desta arte, o poema escolhido para abrir essa retomada é  Construção, música de Chico Buarque de Hollanda.

 Esta composição é um prato cheio para os amantes de poesia, a começar pelo título, que se refere tanto ao cenário da construção civil, quanto a própria construção do poema. A história do personagem se modifica, conforme Chico alterna na segunda e terceira estrofe apenas as duas últimas palavras dos versos que utilizou na primeira estrofe. Ou seja, ele cria uma história ao modificar algumas palavras de lugar, atribuindo aos versos então um novo sentido, logo, construindo uma nova história, ou, um outro ponto de vista. "Pródigo" é a única palavra que ele utiliza na segunda estrofe, que não utilizou na primeira.

 Um outro detalhe interessante para reparar é que a última palavra dos versos - da primeira, segunda e terceira estrofe - é sempre proparoxítona. Leia com atenção o poema, e tire suas próprias conclusões.

Chico Buarque - Construção


Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego

Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público

Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contra-mão atrapalhando o sábado

Por esse pão pra comer, por esse chão prá dormir
A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir,
Deus lhe pague

Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
Pela fumaça e a desgraça, que a gente tem que tossir
Pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair,
Deus lhe pague

Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
E pelas moscas bicheiras a nos beijar e cobrir
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir,
Deus lhe pague